Reformular e harmonizar normas de previdência e segurança e saúde no trabalho: uma modernização necessária


O país tem debatido a realização de reformas essenciais para estimular o investimento, o crescimento sustentado, a geração de empregos e a necessária modernização do ambiente de negócios, como ocorreu com as Reformas Trabalhista e a da Previdência. Mas ainda há muito o que avançar. Nesse rumo, uma reforma pouco comentada, mas fundamental, é a do sistema de concessão de benefícios previdenciários conjugada com a harmonização das Normas de Segurança e Saúde no Trabalho (SST).

Evidências revelam que esse sistema está desatualizado. Consequências disso são o desperdício de recursos públicos, a insegurança jurídica, o fomento a conflitos, custos para as empresas, entre outras. Preocupa, sobretudo, que tal descompasso com o mundo atual acaba por distanciar as regras previdenciárias de seu mais nobre papel: o de estimular medidas para garantir a saúde do trabalhador, beneficiando-o de uma vida melhor.

Não é por menos que, frequentemente, benefícios previdenciários ativos têm sido objeto de revisão. Aliás, a criação do Programa de Revisão de Benefícios (Lei 13.457/2017) foi, entre outros, motivada pelo alto número de auxílios por incapacidade de longa duração.

Dados do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) revelam, por exemplo, que em 2019 o pente-fino realizado nos benefícios com indícios de fraude e irregularidades cessou ou suspendeu mais de 260 mil benefícios, com economia estimada no período de um ano de R$ 4,3 bilhões[1].

Por outro lado, entre 2007 e 2019, apesar da taxa de acidentes e a de incapacidade terem se reduzido - cada uma, em cerca de 40%[2] no período –, o número de auxílios por incapacidade de longa duração permaneceu alto: ao final de 2020 eram cerca de 1,6 milhão de pessoas recebendo esse benefício por um período entre um a dois anos, e 170 mil recebendo-o por três ou mais anos[3].

O mesmo ocorre com a aposentadoria por invalidez: em torno de 1 milhão de pessoas a recebiam por 3 anos ou mais ao final de 2020. Não é por outra razão que a meta da Previdência para a realização de pente-fino nos benefícios do INSS ativos, em 2021,  foi fixada em 900 mil [4].

A hiperjudicialização de questões relacionadas à concessão de benefícios previdenciários também é preocupante. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), revelam que, entre 2015 e 2018, houve um aumento de 140% do número de ações judiciais referentes a esse tema[5]. Para se ter uma ideia, tramitaram no Poder Judiciário, nesse mesmo período, aproximadamente 8 milhões de processos relacionados à concessão de benefícios previdenciários [6].

Não há dúvidas do impacto disso tudo para as empresas, pois, dentre outros fatores, quando há afastamento de trabalhadores, é preciso arcar com o custo do tempo perdido com a interrupção da produção, com a substituição de afastados, com as despesas dos processos administrativos e judiciais em que é parte envolvida. Igualmente, há prejuízo para os trabalhadores, que poderiam usufruir melhores condições de saúde e dos benefícios previdenciários com maior presteza e eficiência.

Tudo isso se agrava pela pouca harmonia entre as regras previdenciárias e as normas de SST. Embora possa parecer que ambas as legislações tenham diretivas similares, especificidades adotadas em cada uma delas, sem o alinhamento necessário, acabam por gerar divergências e aplicação nos casos concretos em caminhos opostos.

É possível identificar esse desalinhamento, por exemplo, na hora de elaborar os programas, laudos, perícias e no preenchimento do Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP) que, por vezes, trazem informações inseridas de forma equivocada ou contraditória, fruto do descompasso das interpretações divergentes das duas legislações.  Com isso, se irrompe um palco propício aos conflitos no sistema de concessão dos benefícios.

Esses fatos, ainda que ilustrativos, sustentam a necessidade de se realizar uma ampla reformulação nesse sistema, em harmonia com a perspectiva da segurança e saúde no trabalho. Até porque um regime de concessão de benefícios previdenciários (aposentadoria, auxílio por incapacidade temporária, auxílio-acidente etc.) moderno e eficiente, alinhado às regras de SST, é fator determinante para a sustentabilidade da Previdência e para contribuir com um melhor ambiente para que as empresas reforcem a sua atuação na gestão e prevenção de agravos e de afastamentos do trabalho, consequentemente beneficiando com maior proteção os trabalhadores.

Para tanto, iniciativas devem ser postas em movimento imediatamente, começando a revisão em regulamentações da área que constantemente são apontadas como problemas pelas empresas e especialistas. Nesse contexto, transparência, eficiência e segurança jurídica são premissas imprescindíveis, que devem orientar essa reformulação no sistema e sua harmonização com os normativos de SST.

É de se reconhecer, nesse esforço, que há temas que precisam de cuidadosa análise técnico-interdisciplinar (trabalho, SST e previdência) pelo seu alto grau de complexidade. Mas ainda assim alguns pontos devem ser abarcados com urgência para iniciar essa necessária reformulação, entre os quais: a) o acesso pleno às informações, para que os interessados possam conhecer as regras aplicáveis a sua situação concreta e os procedimentos previdenciários de solicitação, prorrogação, concessão e contestação de benefícios; b) aperfeiçoamento das regras processuais administrativas, com simplificação e efetiva garantia de ampla defesa de trabalhadores e empresas; c) regras claras, simples, definições comuns e critérios para concessão de benefícios, tudo isso alinhado com as legislações de trabalho e de SST; e d) desburocratização e gestão eficiente do sistema previdenciário.

Ou seja, é necessária a adoção de um novo paradigma, no qual as regras de previdência e de saúde e segurança no trabalho estejam harmonizadas e alinhadas em benefício de todos, desanuviando o sistema, diminuindo os custos públicos e das empresas, com burocracias reduzidas, segurança jurídica e estímulo ao mercado formal de trabalho.

Com isso, o Brasil poderá se beneficiar estrategicamente de um ambiente de trabalho que fomente e amplie, constantemente, em empresas e trabalhadores, um sentimento de cuidado e atenção com a saúde e a segurança do trabalhador.



[1] Vide: Pente-fino do INSS já cancelou 261 mil benefícios comeconomia anual de 4,3 bilhões — Português (Brasil) (www.gov.br). Acesso em outubro de 2021.

[2] A taxa de incidência de acidentes do trabalho por 1000 vínculos caiu de 21,99 para 13,97 de 2007 a 2019, e a de incidência de incapacidade temporária caiu de 19,09 para 11,54 no mesmo período. Fonte:  Anuário estatístico de Acidentes do Trabalho (2008 a 2020)

[3]Fonte: dados abertos disponibilizados pelo INSS na plataforma dados.gov.br.

[4]Idem.

[5] Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER). A judicialização de benefícios previdenciários e assistenciais. Brasília, CNJ: 2020. Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/10/Relatorio-Final-INSPER_2020-10-09.pdf. Acesso em dezembro de 2021.

[6] VAZ, Paulo Afonso Brum. A judicialização dos benefícios previdenciários por incapacidade: da negativa administrativa à retração judicial. Direito Hoje. Disponível em https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=pagina_visualizar&id_pagina=2174#_ftn7. Acesso em novembro de 2021.

Fonte: CNI