Ruído, aposentadoria especial e a penalização do bom empregador

Desde 2019, a Receita Federal do Brasil (RFB) vem realizando uma série de cobranças contra várias empresas, para recebimento de valores relativos à contribuição adicional para financiamento da aposentadoria especial vinculada ao agente nocivo ruído. Com base no julgamento do ARE 664.335, pelo STF, a RFB entendeu, inadequadamente, que o Tribunal teria decidido que haveria uma presunção de que Equipamentos de Proteção Individual (EPI) não seriam suficientes para proteger o trabalhador do ruído. Por essa perspectiva, quando houver ruído no local de trabalho acima dos limites de tolerância, deve haver automaticamente a cobrança da contribuição adicional, pois qualquer EPI não seria eficaz.

Contudo, não apenas essa interpretação é inadequada, como essa cobrança indiscriminada penaliza o bom empregador.

Entendendo a decisão do STF

A decisão do STF, publicada em fevereiro de 2015, tratava de um trabalhador exposto a ruído que requereu aposentadoria especial. No caso, foi apresentada como prova uma declaração do empregador, no Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP), de que o trabalhador utilizava EPI eficiente, que o protegia contra o agente nocivo – logo, não haveria direito à aposentadoria especial.

Ao analisar o caso concreto, a Corte entendeu que esse documento não bastaria para afastar a aposentadoria especial, e deferiu a contagem de tempo especial. Adicionalmente, fixou duas teses de Repercussão Geral (tema nº 555):

I – Para que haja aposentadoria especial, deve haver efetiva exposição do trabalhador a agente nocivo à sua saúde, de modo que, se o EPI for realmente capaz de neutralizar a nocividade não haverá respaldo constitucional à aposentadoria especial;

II – Quanto à exposição a ruído acima do limite legal de tolerância (85 decibéis), a declaração do empregador, no âmbito do Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP), no sentido da eficácia do Equipamento de Proteção Individual - EPI, não descaracteriza o tempo de serviço especial para aposentadoria.

Portanto, o STF afirmou, com todas as letras, que, se utilizado EPI eficaz, capaz de neutralizar o agente nocivo, não é devida a aposentadoria especial. Contudo, especificamente no caso do ruído, manifestou-se que a mera declaração do empregador quanto à eficácia dos EPIs não seria por si suficiente para negar a aposentadoria especial.

É dizer: é possível, sim, que o ruído seja neutralizado, de modo a não ensejar aposentadoria especial, desde que haja outros elementos, para além do PPP, que atestem a eficácia do EPI.

As autuações indevidas da Receita Federal

A aposentadoria especial significa o trabalhador se aposentando mais cedo. Com isso, é preciso custear essa inatividade precoce por meio de um tributo, qual seja, a contribuição adicional para financiamento da aposentadoria especial, também chamada de GILRAT, uma alíquota de 6%, 9% ou 12% sobre o salário.

Em 2019, interpretando e ampliando a decisão do STF, a RFB editou o Ato Declaratório Interpretativo (ADI) nº 2/2019[1]. Esse ADI, em suma, considera ser devido o pagamento da contribuição adicional, ainda que sejam adotadas medidas de proteção coletivas ou individuais que neutralizem ou reduzam a exposição do trabalhador a níveis legais de tolerância.

A Receita, então, ampliou ações contra empresas para requerer o pagamento das contribuições adicionais, nos casos em que no ambiente de trabalho houver ruído acima de 85 decibéis. Nessas situações, tem havido presunção de exposição do trabalhador ao agente nocivo, independentemente de a empresa adotar ações que neutralizem a exposição para níveis abaixo do limite de tolerância mencionado (85 dB). Sequer tem sido considerada a real eficácia da utilização dos EPIs fornecidos pelas empresas. Em outras palavras, parte-se da premissa de que é impossível neutralizar o ruído.

Portanto, a RFB tem cobrado o pagamento da alíquota adicional referente ao ruído (de 6%), que tem se traduzido em cobranças – inclusive retroativas – milionárias das empresas, e em forte impacto negativo na segurança jurídica do país.

O bom empregador no panorama atual

Nessas discussões, é importante destacar um ponto comumente ignorado: o impacto negativo para o bom empregador, que diligentemente busca assegurar, com ações e estratégias de segurança, viáveis e criteriosas, um ambiente de trabalho seguro. Medidas para eliminar ou neutralizar agentes representam práticas que não apenas potencializam a proteção à saúde dos trabalhadores, mas também demonstram um comprometimento com os mais altos padrões de segurança laboral.

No entanto, quando a RFB presume a exposição ao ruído em níveis acima do limite de tolerância e autua as empresas, independentemente de todas as ações realizadas (inclusive fornecimento e treinamento para correto uso de EPIs), ela desconsidera todo o esforço e investimentos realizado em prevenção. Com isso, equipara os bons empregadores àqueles que não têm nenhuma preocupação com eliminação ou neutralização da exposição a agentes nocivos. Na prática, é possível afirmar que isso é um desestímulo para investimentos em prevenção e segurança pelas empresas.

Dito de outro modo, ao realizar essas cobranças milionárias, a Receita Federal trata da mesma forma empregadores com cultura e prática de prevenção, e aqueles que não adotam qualquer ação preventiva. Assim, ela envia uma mensagem desmotivadora para boas práticas.

Esse cenário é especialmente grave pois tais cobranças têm valores exorbitantes. Com efeito, a Operação GILRAT[2] da Receita Federal, ocorrida no ano de 2021, notificou 6.150 empresas em todo o Brasil, com cobranças que somaram 242 bilhões de reais. Segundo o Relatório Anual de Fiscalização 2023-2024 da RFB, somente em 2023, foram emitidas 74 notificações relativas à contribuição adicional; em 2019 (vide Plano Anual de 2019), houve cobrança de mais de 2,7 mil CNPJs.

 

Reflexão final

 

A decisão do STF não isenta as empresas de suas responsabilidades. Ao contrário, enfatiza uma necessidade de avaliação real da eficácia dos EPIs. Se comprovadamente eficazes, os EPIs neutralizam a nocividade do ruído e, por extensão, deve-se afastar a cobrança de contribuição adicional, pois não ocorre o fato gerador do tributo (a efetiva exposição). Essa conclusão, embasada na Tese de Repercussão Geral 555 do STF, é incompatível com os procedimentos adotados pela RFB, que tem presumido a exposição do trabalhador.

É essencial que a verificação da eficácia dos EPIs seja tratada com seriedade e rigor técnico, sem presumir ineficácia dos EPIs, para respeitar o empenho dos empregadores que valorizam e protegem seus trabalhadores. Autuações da Receita que desconsideram a eficácia da proteção individual e a inexistência de efetiva exposição ao ruído acima dos limites de tolerância, em linha com o ADI nº 2/2019, vão em sentido contrário a isso.

Em síntese, a interpretação ampliativa e punitiva adotada pela Receita Federal tem efeitos negativos nas relações de trabalho, especialmente no campo da prevenção e da saúde e segurança no trabalho. Ora, quando ela iguala o bom empregador àquele que não provê proteção aos empregados, acaba desestimulando a adoção de melhores práticas.

Em conclusão, é necessário que este debate avance no sentido de valorizar-se o bom empregador, em prol da promoção de um ambiente de trabalho mais seguro para todos. Para isso, é preciso que se supere a presunção geral de ineficácia de EPIs em relação ao ruído, como vem entendendo a Receita Federal, e seja garantida a segurança jurídica.


[1] Ato Declaratório Interpretativo RFB nº 2/2019, publicado no DOU de 23/09/2019: “Art. 1º Ainda que haja adoção de medidas de proteção coletiva ou individual que neutralizem ou reduzam o grau de exposição do trabalhador a níveis legais de tolerância, a contribuição social adicional para o custeio da aposentadoria especial de que trata o art. 292 da Instrução Normativa RFB nº 971, de 13 de novembro de 2009, é devida pela empresa, ou a ela equiparado, em relação à remuneração paga, devida ou creditada ao segurado empregado, trabalhador avulso ou cooperado de cooperativa de produção, sujeito a condições especiais, nos casos em que não puder ser afastada a concessão da aposentadoria especial, conforme dispõe o § 2º do art. 293 da referida Instrução Normativa.”

[2] A Contribuição do Grau de Incidência de Incapacidade Laborativa Decorrente dos Riscos do Ambiente de Trabalho - GILRAT, antigo SAT (Seguro Acidentes do Trabalho)

é presidente do Conselho de Relações do Trabalho da CNI desde novembro de 2010 e membro da diretoria da confederação. É o atual vice-presidente da OIE (Organização Internacional dos Empregadores) para a América Latina — formada por 143 países — e representante da CNI na OIT (Organização Internacional do Trabalho), ambas com sede em Genebra, na Suíça. Formado em direito e administração de empresas. É empresário.

é analista de Relações do Trabalho da CNI, advogado e especialista em Direito Constitucional pela Universidade Católica de Brasília.

Fonte: Conjur